
Nega Hamburguer
Despigmentada
Elisama Ximenes
“Pega a casca da laranja, a folha do mamão e ferve, é o melhor remédio”, o senhor de cabelo e manchas brancas recomendou. Não perguntei o nome dele. Nem lembrei, para falar a verdade. Era a primeira vez, em 15 anos com o vitiligo, que eu, sozinha, tinha coragem de puxar conversa com outra pessoa de pele despigmentada. Foi tanta conversa de uma só vez, enquanto o ônibus fazia o caminho entre o campus e o terminal, que o nome do idoso foi a última coisa de que me lembrei de perguntar.
Sozinha porque, das outras vezes que conheci e conversei com outras pessoas com vitiligo, elas estavam na sala de espera do dermatologista e minha mãe tinha feito o contato. Eu tinha cinco anos de idade. Os primos dos meus pais iam se casar e, sendo eu a criança do momento na família, chamaram a filha do Francisco e da Mauricelia para ser a dama de honra. Era a primeira vez. Também seria a estreia de algum tipo de maquiagem no meu rosto. A festa foi bonita e, para a pequena, eram só elogios.
A mamãe fez o de costume quando chegamos em casa. Me enfiou pra debaixo do chuveiro pra tomar aquele banho e começou, com um algodão, a retirar a maquiagem. Mas ali, na pálpebra de um dos olhos - não se lembra mais qual dos dois -, tinha uma manchinha branca que não saia por nada. Depois de muitas tentativas, percebeu que aquilo fazia parte da pele da primeira filha. Ela e o papai trataram de procurar saber o que era.
Ainda me lembro da doutora de cabelo loiro na clínica do Valparaiso, entorno de Brasília, dizendo que poderia se tratar de vitiligo. Não que antes a opção pano branco não tenha sido considerada. Desde a pequena mancha na pálpebra, as outras não se inibiram em aparecer. Uma ali no tornozelo, outra nos cotovelos, nos joelhos. Quase sempre onde o corpo faz curva ou se dobra. A outra pálpebra também ganhou a descoloração.
A verdade é que o vitiligo nunca foi um problema na minha vida. Ele, talvez, tenha aparecido por problemas emocionais. É o que os médicos especulavam, já que não havia nenhum caso anterior na família. Hipótese confirmada pela psicóloga do Hospital Universitário de Brasília. O senhor do ônibus não sabia da minha história. Mas, talvez, ver uma jovem com o mesmo problema de pele o fez sentir-se à vontade para falar.
Assim como a menina, o senhor já havia procurado por diversos tratamentos e passado pelas mãos de outros tantos médicos. Mas, no fim, foi o conhecimento empírico que lhe trouxe esperança. A combinação laranja e mamão foi o que lhe fez ver, pela primeira vez, a volta discreta da pigmentação. Descendo a rua de casa, ainda digerindo a conversa e tentando pensar em como aquela receita podia dar certo, escutou de longe “ei, menina!”.
Olhou para trás. Ninguém. Depois, mais alto “ei, você, aqui no portão”. Olhou para o lado e, de dentro de uma casa logo no início da rua, uma senhora a chamava. Sorriu em retribuição à expressão simpática da estranha e se aproximou do portão. A senhora fez o mesmo. Com a grade as separando, depois de uma rápida olhada da cabeça aos pés - que a gente costuma fazer com gente desconhecida - encontraram o que lhes aproximava. Na verdade, a senhora já havia reparado há mais tempo.
- É que vejo você passando aqui todo dia e faz tempo que quer te falar isso. - estendeu a mão, pegou o braço da menina e ficou observando enquanto falava - não sei se você percebeu, mas eu também tenho vitiligo e escutei falar de uma receita muito boa…
Antes que ela continuasse, a menina lembrou do moço do ônibus e de tanta gente que se dizia sabida da cura para aquelas manchinhas misteriosas. Sorriu secretamente em pensamento. Mas permaneceu atenta às palavras da mulher. Que continuava passando a mão nas manchinhas dos dedos e as mais ralinhas no braço da menina.
- Me disseram que uma coisa natural e tiro e queda é pegar o seu primeiro xixi do dia e passar nessas manchinhas. Com o tempo vai passando, você vai ver.
Quis rir ainda mais da receita, mas segurei e questionei:
- Ah é? E a senhora faz isso? Tem melhorado.
- Não, eu comecei, mas não deu muito certo. Aí desacreditei. Depois me disseram que é porque eu já to velha e essas coisas dão certo mesmo é em gente jovem ainda igual você.
Foi aí que percebi o olhar dela. Era como se tivesse perdido já as forças de repigmentar a pele e a sentença sobre sua idade tivesse sido como uma tesoura que cortou de vez o fio da esperança. Mas ver uma menina com vitiligo a fez crer que, talvez, era bom avisar logo antes que a tal tesoura fizesse o mesmo estrago. Mal sabia que a interlocutora acreditava ainda menos em uma nova pigmentação da pele.
Então, resolvi acenar com a cabeça e confirmar com ela que iria sim fazer o teste. Não sem ela ter feito eu prometer e garantir que ia lhe dar o retorno. Que dia mais inusitado. A estudante de jornalismo nem podia imaginar que uma pauta sobre uma coisa que fazia parte dela pudesse cair assim em suas mãos. Isso porque, naquela semana, ela estava responsável pela editoria de saúde da disciplina de produção que fazia. Quando o único banco restante do ônibus era aquele ao lado do moço com vitiligo, não pensou em outra coisa.
Faria uma reportagem sobre as manchinhas que se tornaram um mistério em sua vida desde 1999. Esqueceu de perguntar o nome do senhor, mas lembrou de lhe pedir se podia usar o que ele disse em uma matéria pra faculdade. Ele, grato, aceitou. E pensou que a partir dali seguiria à procura de especialistas e, talvez, um outro personagem. Nem poderia imaginar que uma surgiria logo ali, na rua de casa, também, espontaneamente.
Estava fora de cogitação ser uma das próprias personagens. Depois das entrevistas espontâneas com os dois idosos, seguiu atrás de um farmacêutico da Universidade Federal de Goiás que fazia uma pesquisa para criação de uma pomada à base da planta do cerrado, Mamacadela. Aquela mesma que sua mãe fazia beber o chá da raiz quando era pequena. A mesma que, por vezes, ela fingia ter bebido de tão ruim que era.
Escrita a matéria. A professora leu o texto, fez algumas considerações, mas cobrou “eu acho que você deve inserir você, como portadora, no texto”. Deu-se um jeito e coloquei, discretamente, que a autora da reportagem também era despigmentada. Não sem pensar em toda a minha história. Da mamãe chorando, abraçada comigo, pedindo perdão pela forma com que me criava. Depois que pessoas sem coração disseram que ela era a única e total culpada pela doença.
Lembrei das idas rotineiras, toda primeira terça-feira do mês, ao dermatologista. Das pessoas que encontrava lá, muitas com vergonha. Outras cobertas da cabeça aos pés, mesmo que fizesse um sol de 40º. Recordei das conversas que meus pais tinham comigo “isso não é nada, minha filha, não tem porque se envergonhar, são só umas manchinhas, você é diferente, só isso”. E, realmente, nunca tive nenhuma vergonha.
Mesmo na época em que meu pai sofreu um acidente e a mancha dos joelhos se estendeu por toda a perna, os shorts continuaram sendo a peça de roupa preferida. Apesar de lidar muito bem com isso, não escapei do preconceito. Zebra e vaca malhada são alguns dos animais a que fui comparada na escola. Sem contar quando não perguntavam se era pereba, ou se era contagioso. Era difícil colocar isso em uma reportagem, antes escrita com tanto distanciamento.
Era complicado colocar o emocional em um texto sobre algo que mexia tanto comigo. Lembrei também dos remédios diversos que tomara e das recomendações diferentes a cada consulta. “Tem que usar protetor até dentro de casa, fator 50!”, “tem que ser protetor com fator mínimo, porque a pele do vitiligo é sensível”, “passa essa pomada e fica 15 minutos no sol com ela”, “passa a pomada e não saia no sol com ela”. Eu e meus pais éramos quase que fantoches dos dermatologistas. Até que nos mandaram à psicóloga. Foi a melhor época pra mim. Na minha cabeça, “era consulta de brincar”. Mas não entendia porque o papai e a mamãe chegavam tão apreensivos e saiam tranquilos.
Foi tanta coisa. A falta de condição, remédios caros. A interrupção do tratamento psicológico porque a única do hospital público se demitiu e não tínhamos dinheiro para uma particular. Colocar isso tudo em um texto da faculdade, em uma época em que as manchinhas haviam voltado a crescer devido ao stress constante, era mais que desafiador, era dolorido. Só depois, escrevendo essa crônica, eu saberia que podia ser uma prática libertadora.