
Foto: Letícia Fiuza
Feira das Minas: a luta pelo espaço das mulheres no empreendedorismo goiano
Conheça a iniciativa que ocupa a cidade e acolhe centenas de empreendedoras nas ruas de Goiânia
Letícia Fiuza, Luana Cardoso, Vitória Castro e Yanca Cristina
A desigualdade de gênero é um dos principais fatores que distingue as oportunidades de homens e mulheres no empreendedorismo brasileiro. São elas que ganham menos, estão obrigatoriamente vinculadas a serviços domésticos e ocupam menos cargos de chefia. Na divisão sexual do trabalho socialmente imposta, cabe às mulheres se contentarem com o que está no seu ambiente privado, cuidar da casa e da família. Aos homens, há todo um universo a ser explorado: empreender, governar e conduzir.
Em 2017, o IBGE apontou que as brasileiras ganhavam em média 24% a menos que os homens e eram mais afetadas pelo desemprego. Conforme identificado pelo Fórum Econômico Mundial, em 2019, o Brasil ocupava a 92ª posição no ranking que mede a igualdade entre homens e mulheres em 153 países. Já em 2020, outro dado alarmante foi confirmado pela pesquisa "Percepções sobre violência e assédio contra mulheres no trabalho", realizada pelo Instituto Patrícia Galvão, em que para 92% dos entrevistados, mulheres sofrem mais situações de constrangimento e assédio no ambiente de trabalho que os homens.
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Feira das Minas é realizada no Centro de Goiânia | Foto: Letícia Fiuza
Para além dos números, existem iniciativas subversivas que buscam romper as barreiras da segregação e promover a independência financeira feminina. A Feira das Minas é um dos projetos que compartilham essa missão. Inaugurada em outubro de 2018, a feira conta com uma equipe composta exclusivamente por mulheres. A idealizadora é a atual Gerente de Juventude da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Políticas Afirmativas de Goiânia, Pauline Arroyo.
Tudo começou a partir do desejo de criar um brechó. Não era esperado que aquela ideia inicial rendesse frutos com tanta demanda e potencial de expansão. Na época, Pauline era apenas uma estudante de Artes Visuais na Universidade Federal de Goiás (UFG), que possuía algumas peças de roupa e acessórios, os quais não usava e gostaria de passar para frente. Portanto, de forma improvisada, foi organizada em sua casa uma reunião de pessoas com o mesmo objetivo.
Logo no primeiro momento houve uma grande taxa de aceitação, o que evidenciou o terreno fértil para o crescimento do que ainda era um sonho. Atualmente, o improviso se tornou a maior feira de mulheres do Brasil, e conta com seis organizadoras diretas. Em dias de evento, eletricistas, bombeiros, seguranças, freelancers e voluntárias também compõem a equipe.
Desse modo, a Feira das Minas ocorre durante a tarde de um domingo por mês e em edições especiais. O principal enfoque diz respeito a proporcionar visibilidade às empreendedoras goianas, a partir da exposição de produtos, a maioria de confecção própria, como roupas, acessórios, artesanato, alimentação, drinks e entre outros. Para a goiana Ana Luisa Macedo, dona da loja de sabonetes naturais “Azê”, o ambiente da feira possibilita a convivência com outras mulheres e potencializa o fluxo de ideias e amparo feminino.
A diversidade é outra característica marcante. O espaço é integrado pelo espírito de acolhimento entre todos os gêneros e idades, priorizando uma boa relação com expositoras e clientes.
“A Feira das Minas veio em um momento maravilhoso, pois me incentivou a acreditar em mim como mulher empreendedora e a crer que consigo, sim, trabalhar fazendo algo que gosto e sem tem que me sujeitar a trabalhos abusivos e patrões desrespeitosos. Encontrei na feira das minas uma rede de apoio onde mulheres elevam umas às outras e se valorizam”, relata a expositora Brenda Ferreira.
Empreender e resistir
Condizente ao apontamento do Sebrae, e com base em dados do IBGE, o número de mulheres empreendedoras no Brasil está em ascensão e atingiu uma marca histórica no terceiro trimestre de 2022, com mais de 34% de mulheres proprietárias de seus negócios no país, totalizando 10,3 milhões.
No âmbito goiano, é inegável a influência da Feira das Minas no fomento ao mercado de trabalho feminino e independente. “Damos visibilidade ao trabalho de mais de 120 mulheres por edição realizada, nosso impacto econômico também é significativo para o mercado local. Nosso último levantamento, realizado antes da pandemia, estimou que movimentamos por edição entre 65.000 e 75.000 reais em vendas, um valor significativo para a economia local”, conta Jordana Costa, gerente do projeto.
"Foi a feira das minas que me fez enxergar o quanto tenho uma loja incrível e querida para as outras pessoas, pois muitas pessoas foram me prestigiar e eu nunca havia feito tantas vendas em apenas um dia! É um ambiente extremamente acolhedor para nós, mulheres. E que gera uma ótima fonte de renda!" — relato de uma das marcas expositoras, Pratas de Gaia.
A cada evento, são recebidos em torno de 600 a 1 mil visitantes, e fornecidas vagas reservadas para minorias. Sob essa perspectiva, a iniciativa se mostra comprometida em agregar valor social e afetivo com todas as partes que fazem a feira acontecer, a partir de uma representação inclusiva e eficaz, dentro e fora das redes sociais. "É muito legal ver a diversidade de expositoras, que vai desde brechó até sex shop. Acho muito interessante toda essa variedade", pontua a visitante Eloísa Victória.
No entanto, mesmo diante de tantos resultados positivos, a feira ainda precisa encarar duros obstáculos para dar sequência a suas atividades. “Nossas maiores dificuldades desde o início se resumem a estrutura, falta de incentivo e apoio, tanto público quanto privado, dificuldade em encontrar um local que comporte o evento. Falta até mesmo de instrução das autoridades quanto a como viabilizar e fazer o projeto continuar vivo”, pontua Jordana.
Inicialmente, a Feira das Minas acontecia no Centro Cultural Martim Cererê, no Setor Sul de Goiânia. Entretanto, conforme a proporção da feira aumentou, o espaço se tornou insuficiente, limitando o evento a no máximo 60 expositoras. Com o apoio da vereadora Sabrina Garcez, a realização mudou para o Cepal, onde foi possível dobrar o número de empreendedoras envolvidas.
Porém, as péssimas condições estruturais do local se tornaram mais um obstáculo a ser enfrentado. Falta de acessibilidade para pessoas com deficiência; banheiros em situação precária; escassez de segurança e telhado repleto de goteiras, foram o que tornaram uma nova mudança inevitável. Após a reforma e reinauguração do Martim Cererê, a feira voltou a sua primeira casa e agora também ocorre no Colégio Lyceu de Goiânia.
A parte dolorosa é que a quantidade de mulheres atendidas caiu pela metade outra vez, devido ao tamanho reduzido dos dois ambientes. “Infelizmente, a falta de atenção do governo para com os espaços públicos e necessidades dos feirantes, nos impede de continuar usando espaços públicos, já que estes estão em situação de abandono”, conclui a gerente.
Dessa forma, a falta de leis e projetos que reconheçam a feira e a enquadrem em um nicho específico, para que seja possível regularizar o processo, corresponde a uma das reivindicações primordiais da organização. Contudo, essa problemática não é exclusiva, outras feiras alternativas, que estimulam a economia criativa, também encaram os efeitos negativos da falta de amparo legislativo.
No momento, está em fase de desenvolvimento a Associação Feira das Minas, com o intuito de capacitar mulheres empreendedoras ou que querem começar nessa jornada e precisam de auxílio. “Essa demanda surgiu a partir da compreensão de que fornecer um espaço para a venda dos produtos não é mais suficiente. Queremos oferecer um acompanhamento e direcionamento dessas mulheres também no pré e pós-feira, oferecendo cursos e capacitando-as no empreendedorismo”, anuncia Jordana.
Mais do que uma feira
“A Feira das Minas hoje não se resume em uma feira”. Essa foi a resposta da gerente, Jordana Costa, quando perguntada sobre a importância da feira para a população. Hoje, a Feira das Minas é muito mais do que um projeto tímido de empreendedorismo, agindo fortemente no cotidiano da cidade e de muitas mulheres goianas, apresentando-se como uma oportunidade de independência financeira pautada pela sororidade.
Muito além de fornecer para as mulheres empreendedoras um espaço seguro e propício para a comercialização dos seus trabalhos, a Feira das Minas é uma rede de apoio, ensino e acolhimento. A expositora Fernanda Souza, conta que, após a perda do companheiro no fim de 2018, se viu sozinha e responsável pelo sustento dos 4 filhos. Segundo pesquisa realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) neste ano, quase 50% dos lares no Brasil são chefiados por mulheres. Repentinamente nesta mesma situação, Fernanda encontrou na Feira uma saída.
“Sou manicure e alugo uma sala comercial de onde tiro meu sustento e dos meus filhos. Fiz a feira apenas uma vez, com a ajuda da minha filha, e a minha experiência foi a melhor possível. Em apenas uma Feira, consegui o que fazia com um mês inteiro como manicure. Consegui, com a ajuda dessas mulheres incríveis, continuar a minha luta, que é minha e sei que é, também, de todas nós”.

A autointitulada “Família Feira das Minas”, em edição realizada no Cepal - Setor Sul | Foto: Instagram
Não é incomum escutar outras histórias como esta entre as expositoras. Nos relatos, muitas mulheres dizem que a motivação para participar da Feira vem de necessidades financeiras, que surgiram após separação, divórcio ou falecimento dos companheiros. Isso demonstra não só como a dependência financeira opera na sociedade, mas também como projetos como a Feira das Minas podem fazer emergir o potencial do empreendedorismo feminino. “A cada edição, saio mais fortalecida e empoderada”, diz a expositora Márcia Helena.
Apesar dos reflexos do patriarcado, como a desigualdade salarial, que tornam a caminhada mais difícil, a conquista da independência financeira é um importante passo para as mulheres, influenciando em inúmeros aspectos, sendo porta de saída para situações de violência doméstica e até fortalecendo sua autoconfiança e fé em suas capacidades como empreendedora e mulher. Como essa é uma de suas principais missões, a Feira não mede esforços para ajudar no que puder.
“Fui pela primeira vez na última edição que teve e fiquei muito inspirada. Me senti muito bem vinda e acolhida, ver mulheres donas de negócios, realizando coisas incríveis me fez mais forte e querer ser um modelo de mulher para a sociedade também”, declara Amanda Reis, frequentadora assídua da Feira das Minas.
Uma das iniciativas mais recentes que visam promover a ascensão das participantes da Feira e se adequar às necessidades das mulheres que a compõem, é o Espaço Kids. Há três edições, expositoras e frequentadoras da Feira podem deixar seus filhos em um espaço de recreação com monitoria e atividades, assim as empreendedoras que também são mães podem atender os frequentadores com mais tranquilidade. Além disso, a Feira promove também atividades que estimulam a arte, cultura e diálogo sobre questões que cercam o universo feminino.
Para a gerente, Jordana Costa, “a Feira ultrapassa os limites e preposições esperadas de uma ‘feira convencional’ e oferece ao público uma opção de lazer aos domingos, com a realização de shows ao vivo, apresentações culturais, rodas de conversa e debates, palestras e recreação. Realizamos em todos os eventos parcerias com ONGs voltadas para adoção de animais e campanhas de arrecadação para causas que apoiam mulheres”.
Ocupar a cidade é o primeiro passo
A realização de feiras é uma prática tradicional em todos os estados do país em suas mais variadas formas e tipos. Algumas delas, como a Feira das Minas, transcende esse conceito e utiliza suas ocupações temporárias e periódicas para reivindicar espaços e direitos. Uma das pautas que estão intrinsecamente ligadas à missão da Feira é a reivindicação do direito à cidade, que tem muitos caminhos, como o mais tradicional, buscando participação nas esferas do Poder Público responsáveis pela administração da cidade, e também com iniciativas cidadãs como esta.
Apesar de ser uma cidade planejada, Goiânia há muito tempo não cabe mais dentro das linhas de Attilio Corrêa Lima, engenheiro e arquiteto responsável pelo planejamento urbanístico da capital, apresentado em 1993. Dessa forma, muitas e muitos cidadãos goianos são marginalizadas e marginalizados em decorrência do crescimento da cidade, que acompanha os desígnios brutais do capitalismo.
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Frequentadores comparecem à edição junina da Feira | Foto: Letícia Fiuza
Em contrapartida, movimentos sociais buscam recuperar o direito pleno à cidade e todos os seus espaços. Na Feira das Minas, uma vez por mês, aglomeradas embaixo de tendas amarelas, rosas, verdes e azuis, essas mulheres utilizam um espaço em algum canto da cidade para reivindicar seus direitos a elas, à igualdade e à dignidade. “É muito legal ver que temos uma rede de apoio em Goiânia e que as pessoas estão lá para unir forças e colaborar umas com as outras”, declara a expositora Melissa Santana sobre o que a presença da Feira representa para a cidade.
A postura da Feira, organizando ações de adoção de animais abandonados, exigindo que as marcas participantes tenham mulheres como as principais responsáveis, abrindo vagas sociais para mulheres pretas, indígenas, transsexuais, baixa renda e portadoras de deficiência, é um indicativo do desempenho do seu papel de agente transformador. Além de abrir caminhos para tantas mulheres goianas, a Feira das Minas também ressignifica os caminhos de Goiânia ocupando espaços.
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Edição de junho da Feira das Minas | Foto: Vitória Castro
A edição do 11 de junho foi realizado no Centro Cultural Martim Cererê, reinaugurado no início do mês passado após uma reforma realizada pela Secretaria de Estado da Cultura (Secult), com o tema “Arraiá das Minas", em celebração das festas juninas, tradicionais aqui no centro-oeste. “Uma das coisas que eu acho mais legais é que a Feira utiliza espaços como o do Martim Cererê, que quase não era utilizado antes, não tinha muito reconhecimento da população”, finaliza Agnes Giuliane, frequentadora e familiar de uma das expositoras.