
Você existe sim
Bárbara Luiza
Fotos: Clara Linhares
Historicamente, dois gêneros foram estabelecidos no âmbito social: o feminino e o masculino. Todavia, existem pessoas que não se identificam com eles: as autointituladas “não-binárias”. Elas não gostam da obrigatoriedade de se encaixar em um sistema que invalida existências e limita as possibilidades do ser. Sua luta é muito importante para o crescimento da liberdade individual. Trata-se de trazer visibilidade para pessoas que foram silenciadas por não se identificarem com padrões impostos por uma sociedade conservadora e exclusivista. Sobre isso, entrevistei o(e) não-binário(e) Éllen Kahalia.
Bárbara Luiza: Qual artigo você utiliza para referir a si próprio(e)? É o mesmo para todos(es) os(es) não-binários(es)?
Éllen Kahalia: Eu tenho uma fluidez de gênero na qual gosto de pronomes neutros e masculinos. Gênero é um espectro imenso com inúmeras possibilidades de identificação, cada não-binário(e/a) tem uma preferência. O que precisamos fazer é perguntar para a pessoa como ela gostaria de ser tratada e respeita-la. Não podemos simplesmente deduzir o gênero de alguém pelo que essa pessoa “aparenta” ser, para nós.
BL: De que forma a sociedade lida com a sua identidade? Você é respeitado(e)?
EK: A sociedade força papéis de gênero na gente: se você se identifica como mulher ter vagina etc; trans precisa se aproximar à imagem de um(a) cis; não-binaria(o/e) não pode usar coisas “femininas" se foi COERCIVAMENTE designado(e) mulher ao nascer (AFAB) ou "masculinas" se foi COERCIVAMENTE designada(e) homem ao nascer (AMAB). Não me sinto nem um pouco mulher, mas nasci com vagina e seios, prefiro usar roupas frescas, saias e tops, adoro rosa, pinto meu cabelo/deixo ele crescer, não sinto vontade de fazer cirurgia, não quero tomar testosterona etc. Continuo me sentindo homem/agenero(e). Tenho orgulho disso. Mesmo que a sociedade não me respeite, erre meus pronomes e tente me forçar a um molde ultrapassado e obsoleto de "mulher" pelo que tenho entre as pernas. Ainda que dentro da própria comunidade trans enfrente rejeição e desrespeito. Embora meu professor deslegitime não-binários(es) durante a aula. Quem sabe de meu gênero sou eu, não preciso da validação de mais ninguém.

BL: Política pode ser a atividade de associar e defender pessoas semelhantes, revolucionando o coletivo. Você considera seu existir um ato político?
EK: Citando autor(a/e) desconhecido(a/e), "quando a sociedade te odeia simplesmente por ser quem você é, (R)existir é um ato revolucionário".
BL: Os(es) não-binários(es) se sentem representados(es) pelo movimento LGBTTIQ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Transexuais, Intersexuais, Queer)?
EK: Gênero fluído está dentro do termo guarda-chuva trans: é não-binário. Muitas pessoas não se sentem representadas por essa sigla, pois a versão mais famosa é a LGBT. Estão estudando novas para substitui-la, como MOGAI (Orientações e Alinhamentos de Gênero Marginalizadas e Intersexo). Dentro da comunidade LGBT existem muitas discórdias, disputas e opressões internas. As pessoas mais pobres não se importam se podem se casar ou adotar, porque simplesmente ainda não possuem o direito de existir. A realidade dessas pessoas, principalmente na mídia, não é representada e muito menos respeitada, elas se sentem excluídas e ainda mais reprimidas. A imagem propagada é elitizada, higienizada, racista, transfóbica, gordofóbica, machista, homofóbica, bifóbica/panfóbica e acefóbica. As travestis negras que são obrigadas a se prostituir não são contempladas por ela. Quem apanha até a morte ao ser viste indo para casa após as paradas de orgulho LGBT, que não tem dinheiro para se expressar de maneira confortável/agradável, que é expulsa(o/e) de casa/trabalho, não é contemplada(o/e). Se sua militância não contempla essas pessoas, só aceita "machos, não veados” ou lésbicas quando estão "realizando fetiches", diz que bissexual é apenas indecisão/falta de vergonha, acha que assexuais não existem, há algo errado. O maior problema dentro da comunidade é o egocentrismo e a falta de empatia. Não podemos medir a reação de uma pessoa oprimida. Não me sinto representade pelo movimento LGBT da mídia.

BL: Levando em conta sua vivência, qual o comportamento necessário que as pessoas assumam para que os(es) não-binários(es) se sintam apoiados(es) e seguros(es)?
EK: Em qualquer tentativa de militar em algo que está fora de sua vivência: você, como pessoa aliada, tem primeiramente que enxergar seus privilégios, frutos de uma opressão sistemática. Sua vida é diferente de uma pessoa oprimida em um aspecto no qual você não é. Você pode ler todos os livros do mundo, fazer um TCC etc e nunca vai entender como uma pessoa diretamente afetada por essa opressão sofre. Aprenda a ficar em silêncio e ouvir o que as pessoas oprimidas tem a dizer. Você não tem direito de dizer que elas têm de ser pacíficas e pacientes com os opressores. Se estiver diante duma situação de injustiça e não houver ninguém com conhecimento/propriedade para falar sobre, reproduza o discurso dos(as/es) oprimidos(as/es). E vítimas não são obrigadas a falar. Existem militantes que são violentes com os opressores, existem es pacientes e didáticos(as/es). Respeite os limites de ambos e seja educado(a/e), não invasivo(a/e). Você deve honrar os pronomes deles(as), mesmo que ache “feio/errado de acordo com a gramática/difícil se acostumar". A língua é algo fluido, evolui com seus falantes. É possível muda-la. Se errar, peça desculpas e se policie para não acontecer de novo. Tente pensar o quão difícil é ser desrespeitado. Para todos(as/es): ninguém tem direito de te deslegitimar. Seu gênero é válido sim. Você existe sim.
Cis: Alguém que se identifica com o gênero que lhe foi designado ao nascer.
Trans: Alguém que não se identifica com o gênero que lhe foi designado ao nascer.
Intersexo: termo geral usado para uma variedade de condições em que uma pessoa nasce com uma anatomia reprodutiva ou sexual que não parece se encaixar nas definições típicas de sexo (feminino/masculino).
O artigo “e” é neutro e pode ser usado para representar todos os gêneros
(Fonte: http://gecopros.blogspot.com.br/)
Esta entrevista foi realizada na disciplina de Produção de Texto Jornalístico I e orientadada pela professora Ângela Moraes, em dezembro de 2015.
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